A incidência global de câncer está aumentando no mundo a cada ano. Essa tendência é influenciada por vários fatores, incluindo mudanças demográficas, fatores de estilo de vida, envelhecimento e crescimento da população, além de melhorias na detecção da doença.
Em adolescentes e adultos jovens, houve um acréscimo significativo no número de cânceres relacionados à obesidade e tireoide. Também foi percebido um aumento na incidência de cânceres de início precoce, diagnosticados em indivíduos com menos de 50 anos de idade. A previsão da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), da Organização Mundial da Saúde (OMS), é de que sejam 35 milhões de novos casos da neoplasia em 2050, o que significa um aumento de 77% em relação a 2022.
Para entender esse panorama e esclarecer dúvidas e mitos sobre o câncer, o blog Saúde e Você entrevistou o Dr. Alexander Welaussen Daudt. O médico é oncologista clínico e coordenador do Centro de Medicina de Estilo de Vida (MEV), do Hospital Moinhos de Vento. Vale lembrar que em 04 de fevereiro é celebrado o Dia Mundial do Câncer, para conscientizar a população global sobre a doença.
1. Mito ou verdade? O objetivo da prevenção primária é impedir que o câncer se desenvolva.
Verdade! A prevenção primária do câncer é crucial para lidar com a crescente incidência global da doença, que é impulsionada por mudanças demográficas, fatores de estilo de vida e métodos de detecção aprimorados. A importância da prevenção primária reside em seu potencial para reduzir significativamente a carga do câncer, visando fatores de risco modificáveis antes do início da doença.
De acordo com a literatura médica, a prevenção primária pode prevenir entre um terço e metade de todos os cânceres, abordando fatores de risco conhecidos. Essa abordagem inclui modificações no estilo de vida, como controle do tabaco, redução do consumo de álcool, promoção da atividade física e manutenção de um peso saudável.
Além disso, a vacinação contra vírus oncogênicos, como hepatite B e papilomavírus humano (HPV), desempenha um papel significativo na prevenção de cânceres de origem infecciosa. Assim, a prevenção primária é particularmente eficaz porque não apenas reduz a incidência de câncer, mas também traz benefícios mais amplos para a saúde pública. Por exemplo, reduzir a exposição a agentes cancerígenos também pode diminuir o risco de outras doenças não transmissíveis.
As estratégias de prevenção primária, como medidas regulatórias contra exposições ocupacionais e ambientais, ainda podem ter efeitos duradouros sem a necessidade de renovação a cada geração, o que é especialmente benéfico em ambientes com recursos limitados.
Em resumo, a prevenção primária do câncer é um componente vital das estratégias globais de controle da doença. Ele oferece um meio econômico de reduzir a incidência e a mortalidade, abordando fatores de risco modificáveis e implementando intervenções de saúde pública que tenham benefícios imediatos e de longo prazo.
2. Mito ou verdade? O objetivo da prevenção secundária do câncer é detectar e tratar doenças pré-malignas (como, por exemplo, lesões causadas pelo vírus HPV ou pólipos nas paredes do intestino) ou cânceres assintomáticos iniciais.
Verdade! A prevenção secundária do câncer se concentra na detecção precoce e intervenção de condições cancerígenas ou pré-cancerosas para prevenir a progressão para câncer invasivo. Essa abordagem é distinta da prevenção primária, que visa fatores de risco modificáveis para reduzir a incidência de câncer. A prevenção secundária envolve, principalmente, estratégias de triagem e vigilância destinadas a identificar o câncer em um estágio inicial e mais tratável, reduzindo assim a mortalidade e a morbidade associadas à doença.
Os mecanismos de prevenção secundária incluem o uso de testes de rastreamento, como mamografia para câncer de mama, exames de Papanicolau para câncer cervical e colonoscopia para câncer colorretal. Esses testes são projetados para detectar o câncer antes que os sintomas apareçam, permitindo uma intervenção precoce. A eficácia desses programas de rastreamento está bem documentada, com rastreamento organizado levando a reduções significativas na incidência e mortalidade por câncer, como visto no câncer colorretal.
Além da triagem, a prevenção secundária pode envolver estratégias quimiopreventivas, que utilizam agentes para inibir a progressão do câncer. Esses agentes podem atuar por meio de vários mecanismos, como modular o estado hormonal, aumentar a vigilância imunológica e inibir a angiogênese, além de afetar processos celulares.
O desenvolvimento de terapêuticas projetadas para interceptação do câncer, com base no conhecimento detalhado da patobiologia neoplásica precoce, é uma área emergente na prevenção secundária. No geral, a prevenção secundária do câncer complementa os esforços de prevenção primária, concentrando-se na detecção e intervenção precoces, melhorando assim os resultados e reduzindo a carga do câncer.
3. Mito ou verdade? Todos os tipos de câncer se desenvolvem de maneira igual na população. Logo, os pacientes não precisam receber um cuidado especial e único, ao longo de seu tratamento.
Mito! A história natural do câncer não é idêntica para todos, pois é influenciada por uma variedade de fatores, incluindo diferenças genéticas, ambientais e biológicas. A literatura destaca alguns aspectos:
1. Heterogeneidade na biologia do tumor: o câncer é caracterizado pela heterogeneidade biológica, que inclui diferenças de idade no início, localização anatômica, subtipos de tumor e agressividade. Essa heterogeneidade forma um espectro que afeta a etiologia e a progressão do câncer, sugerindo que a história natural do câncer pode variar significativamente entre os indivíduos;
2. Previsibilidade e eventos estocásticos versus determinísticos: a previsibilidade dos resultados do câncer varia entre os diferentes tipos de tumores. Essa variabilidade se deve à interação entre eventos estocásticos (como mutações aleatórias) e processos determinísticos (como gargalos evolutivos). Alguns tipos de câncer, como o de mama e o de próstata, por exemplo, são mais previsíveis, enquanto outros, como o de pâncreas, são menos. Isso afeta as previsões prognósticas e o planejamento do tratamento;
3. Especificidade do tecido e fatores genéticos: as alterações genéticas que levam ao câncer podem ser específicas do tecido, o que significa que a mesma mutação genética pode ter implicações diferentes, dependendo do tecido em que ocorre. Essa especificidade tecidual contribui para a variabilidade no desenvolvimento do câncer e na resposta ao tratamento;
4. Variabilidade demográfica e étnica: existem diferenças demográficas na incidência e progressão do câncer. Por exemplo, o câncer de próstata tem maior incidência e risco de progressão para doença metastática em homens negros em comparação com a população em geral, sugerindo que fatores genéticos e possivelmente ambientais contribuem para essas diferenças;
5. Modelos de idade e carcinogênese: as taxas de incidência de câncer específicas por idade podem ser descritas por modelos de carcinogênese em vários estágios. Isso sugere que o número de estágios carcinogênicos e sua duração podem variar entre os tipos de câncer. Isso apóia ainda mais a noção de que a história natural do câncer não é uniforme entre diferentes cânceres ou indivíduos. No geral, esses fatores ressaltam a complexidade e a individualidade da história natural do câncer, necessitando de abordagens personalizadas para a prevenção, diagnóstico e tratamento da neoplasia.
4. Mito ou verdade? O mesmo fator pode ser considerado de risco para várias doenças. O tabagismo e a obesidade, por exemplo, são fatores de risco para diversos cânceres, além de doenças cardiovasculares e respiratórias.
Verdade! As doenças crônicas, incluindo o câncer, compartilham vários fatores de risco modificáveis comuns que são direcionados nas estratégias de prevenção primária. Esses fatores incluem uso de tabaco, obesidade, sedentarismo, dieta pouco saudável e consumo de álcool. A literatura médica destaca consistentemente que estes aspectos contribuem significativamente para a incidência e mortalidade por câncer.
O tabagismo é o principal fator de risco modificável para a doença, responsável por uma proporção substancial dos casos e mortes por câncer em todo o mundo. Está particularmente associado ao câncer de pulmão, mas também contribui para cânceres de boca, garganta, esôfago e bexiga, entre outros. A relação entre álcool, tabaco e câncer bucal também está estabelecida na literatura médica. O seu uso combinado tem um efeito sinérgico, aumentando muito o risco de desenvolver cânceres da cavidade oral e orofaringe.
Já a obesidade e o excesso de peso corporal também são fatores de risco críticos, ligados ao câncer de mama, colorretal e próstata. Os mecanismos envolvem alterações hormonais, inflamação e resistência à insulina. A inatividade física e os maus hábitos alimentares, como baixo consumo de frutas, vegetais e fibras e alto consumo de carnes vermelhas e processadas, são fatores de risco modificáveis adicionais. Essas escolhas de estilo de vida contribuem para a obesidade e influenciam diretamente o risco de câncer por meio de várias vias biológicas, incluindo estresse oxidativo e inflamação.
No geral, abordar esses fatores de risco modificáveis por meio de iniciativas de saúde pública e mudanças individuais no estilo de vida é crucial para a prevenção eficaz do câncer primário.
5. Mito ou verdade? Os fatores de risco não têm nenhuma relação com o ambiente físico, hereditariedade ou estilo de vida.
Mito! As doenças crônicas são influenciadas por uma combinação de fatores genéticos, ambientais e culturais, juntamente com fatores modificáveis do estilo de vida. Veja, abaixo:
1. Fatores genéticos e hereditários: a história familiar e as predisposições genéticas desempenham um papel significativo no risco de doenças crônicas. Por exemplo, uma história familiar de doença arterial coronariana prematura é um fator de risco bem reconhecido para doenças cardiovasculares. Da mesma forma, condições genéticas, como hipercolesterolemia familiar (doença hereditária que resulta em níveis elevados de colesterol total e de lipoproteína de baixa densidade), podem predispor os indivíduos à hiperlipidemia (doença silenciosa e assintomática) e subsequentes problemas cardiovasculares;
2. Fatores ambientais: incluem exposição a agentes cancerígenos ambientais, poluição e riscos ocupacionais, que podem contribuir para o desenvolvimento de doenças crônicas. O ambiente também pode influenciar as escolhas de estilo de vida, como o acesso a alimentos saudáveis e áreas seguras para a prática de atividade física;
3. Fatores culturais e socioeconômicos: as práticas culturais e o status socioeconômico afetam significativamente as escolhas de estilo de vida e os resultados de saúde. Por exemplo, hábitos alimentares influenciados por normas culturais podem afetar a prevalência de obesidade e doenças relacionadas. Fatores socioeconômicos, como escolaridade e nível de renda, estão associados à prevalência de múltiplos fatores de risco para o estilo de vida, incluindo o uso de tabaco e álcool, bem como a inatividade física;
4. Fatores de estilo de vida modificáveis:
• Uso de tabaco: o tabagismo é um importante fator de risco modificável para várias doenças crônicas, incluindo câncer e doenças cardiovasculares. As diretrizes da American Cancer Society enfatizam a importância da cessação do tabagismo na redução do risco de câncer;
• Obesidade: o excesso de peso corporal está ligado a inúmeras condições crônicas, como diabetes, hipertensão e certos tipos de câncer. A literatura sugere que um índice de massa corporal (IMC) entre 18,5 e 27,5 kg/m² é ideal para a prevenção do câncer;
• Inatividade física: a falta de atividade física regular está associada a um risco aumentado de doenças cardiovasculares, obesidade e outras condições crônicas. Recomenda-se atividade física regular, com diretrizes sugerindo pelo menos 150 minutos de intensidade moderada ou 75 minutos de exercícios de intensidade vigorosa por semana;
• Alimentação pouco saudável: dietas ricas em gorduras saturadas e pobres em frutas e vegetais contribuem para a obesidade e doenças crônicas relacionadas. Recomenda-se uma dieta saudável, rica em frutas, vegetais, grãos integrais e legumes, e pobre em carnes vermelhas e processadas, bebidas adoçadas com açúcar e alimentos altamente processados;
• Consumo de álcool: a ingestão excessiva de álcool é um fator de risco para hipertensão, doenças hepáticas e certos tipos de câncer. As recomendações geralmente sugerem não mais do que uma bebida por dia para mulheres e duas para homens;
• Exposição ao sol: embora não seja explicitamente abordado nas referências, minimizar a exposição ao sol e usar protetor solar pode prevenir cânceres de pele, incluindo melanoma.
6. Mito ou verdade? O câncer não é mais uma sentença de morte. A medicina evoluiu muito e os tratamentos são cada vez mais eficazes.
Verdade! A crença de que o câncer é uma sentença de morte pode ser neutralizada enfatizando os avanços significativos na prevenção, detecção precoce e tratamento do câncer, bem como o papel dos fatores de risco modificáveis. A literatura médica destaca vários pontos-chave a esse respeito:
1. Prevenção por meio de modificações no estilo de vida: uma proporção substancial dos casos de câncer está ligada a fatores modificáveis no estilo de vida. Estudos indicam que apenas 5-10% dos cânceres são devidos a defeitos genéticos, enquanto 90-95% estão relacionados a fatores ambientais e de estilo de vida, como tabagismo, dieta, consumo de álcool e inatividade física. Adotar um estilo de vida saudável, incluindo manter um peso saudável, consumir uma dieta rica em frutas e vegetais, praticar atividade física regular e evitar tabaco e álcool em excesso, pode reduzir significativamente o risco de câncer;
2. Impacto da triagem e detecção precoce: programas de triagem eficazes demonstraram reduzir a incidência e a mortalidade por câncer, principalmente para cânceres como o câncer colorretal. Esforços organizados de triagem, como testes imunoquímicos fecais e colonoscopia, levaram a grandes declínios na incidência e mortalidade por câncer colorretal em países com altas taxas de aceitação. A detecção precoce por meio de triagem permite intervenções em um estágio em que o câncer é mais tratável e potencialmente curável;
3. Saúde pública e educação: campanhas e políticas de educação pública que promovam comportamentos saudáveis são cruciais para mudar as percepções sobre o câncer. Aumentar a conscientização sobre a prevenção do câncer e os benefícios da detecção precoce pode ajudar a dissipar mitos e reduzir o estigma associado à doença. Os esforços educacionais devem se concentrar em traduzir a conscientização em mudanças de estilo de vida acionáveis e incentivar a participação em programas de triagem;
4. Avanços no tratamento: embora a prevenção e a detecção precoce sejam críticas, os avanços no tratamento do câncer também melhoraram as taxas de sobrevivência. O desenvolvimento de terapias direcionadas, imunoterapias e medicina personalizada transformou o tratamento de muitos tipos de câncer, oferecendo aos pacientes opções de tratamento mais eficazes e menos tóxicas. Ao focar nesses aspectos, os profissionais de saúde podem ajudar a mudar a narrativa do câncer como uma sentença de morte para uma doença que, com prevenção, detecção precoce e tratamento adequados, pode ser gerenciada de forma eficaz, melhorando a sobrevida e a qualidade de vida da maioria dos pacientes.
7. Mito ou verdade? O estresse, a falta de amigos e de parentes próximos, além de um sono de pouca qualidade nada têm a ver com o surgimento do câncer ou com fatores inflamatórios no organismo.
Mito! A relação entre estresse, solidão, sono e causa do câncer é complexa e multifacetada, envolvendo vias diretas e indiretas. O estresse e a solidão, como fatores psicossociais, têm sido implicados no risco de câncer por meio de vários mecanismos.
O estresse pode influenciar a progressão do câncer, modulando a função imunológica e promovendo a inflamação, que são conhecidos por contribuir para o desenvolvimento do câncer.
O isolamento social, uma forma de solidão, tem sido associado ao aumento do risco e mortalidade por câncer de mama, potencialmente por meio de mecanismos que envolvem inflamação e distúrbios metabólicos.
Os distúrbios do sono são outro fator importante. A má qualidade do sono e a duração insuficiente do sono têm sido associadas ao aumento do risco de câncer, potencialmente por meio de mecanismos que envolvem desregulação do hormônio do estresse e inflamação. A longa duração do sono também foi associada a certos tipos de câncer, como o câncer gástrico, sugerindo que tanto o sono insuficiente quanto o excessivo podem ser fatores de risco.
Escolhas de estilo de vida e fatores ambientais, como exposição a campos eletromagnéticos, podem modular ainda mais essas relações. Por exemplo, comportamentos induzidos pelo estresse, como tabagismo, consumo de álcool e inatividade física, podem exacerbar o risco de câncer. Embora as evidências que ligam os campos eletromagnéticos ao câncer, particularmente em crianças, permaneçam inconclusivas, é considerado um potencial fator de risco ambiental que pode interagir com fatores psicossociais e de estilo de vida para influenciar o risco de câncer.
No geral, a interação entre estresse, solidão, sono e câncer envolve uma combinação de fatores biológicos, comportamentais e ambientais. Abordar esses fatores de risco modificáveis por meio de intervenções no estilo de vida e gerenciamento do estresse pode oferecer caminhos potenciais para a prevenção do câncer.
Fonte: O Dr. Alexander Welaussen Daudt (CRM 10624) é oncologista clínico, coordenador do Centro de Medicina de Estilo de Vida (MEV) do Hospital Moinhos de Vento e preceptor da Residência Médica em Oncologia da instituição. Possui Certificação em MEV pelo ACLM (“American College of Lifestyle Medicine”) e pelo Colégio Brasileiro de Medicina Estilo de Vida.